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terça-feira, 1 de julho de 2008

O Medo

(Para não vos deixar sem ler, recupero um dos momentos mais altos do meu arquivo de blogger. Este tem 5 anos e é o meu favorito)

É assim meus amigos. Há 27 anos que vivo neste cu de Judas a que chamam Margem Sul. O antro mais eclético que, numa curva que vai do fétido ao divino, podemos encontrar em Portugal. A Margem Sul é a sub-urbe por excelência. De tal sorte que se tornou mais do que uma sub-urbe, tornou-se a Margem Sul. Nasci no buraco mais poluído que se pode encontrar na cinta industrial nacional. No Barreiro, ladeado pela Quimigal e pela Siderurgia Nacional, vim ao mundo entre uma nuvem de pesticida e outra de faúlhas de limalha de ferro fundido que se soltavam dos altos fornos de Paio Pires. Não fiquei lá por muito tempo e o meu cú veio parar directamente à Amora.

Uma rápida viagem do refúgio de alentejanos perdidos do pós 25 de Abril até à última colónia genética de Fenícios comerciantes, que fariam corar de vergonha qualquer judeu, fez que o meu coiro voasse de um Barreiro industrial para um Seixal pescador onde o sangue fenício perdia a luta pela sobrevivência face a uma nova colonização pelo Império Romano que era agora perpetrada pelos genes remanescentes em alentejanos vindos das terras de Miróbriga, um pouco mais a sul em Santiago do Cacém. Alentejanos esses que, incluindo a minha família, aportavam agora na pacífica vila de Amora.

Considerando-me um orgulhoso descendente do último posto romano da Peninsula Ibérica sentia-me na obrigação de zelar para que uma pax romana se instalasse a sul do Tejo. Com as colónias fenícias arredadas para um pequeno número de resistentes insuspeitos a tarefa adivinhava-se fácil. Mas na margem sul não paravam só alentejanos perdidos. Na mesma altura e no pós 25 de Abril começaram a chegar à Margem Sul ex-colonos, pretos, ciganos e um ou outro bárbaro do norte. A luta pela supremacia na Margem Sul revelar-se-ia mais difícil que o previsto. Embora os alentejanos fossem em número superior era nas ruas que a batalha se travava. Não raras as vezes que na minha infância me descobri à porrada com pretos, ciganos e outros descendentes de alentejanos.

Já fugi de magotes de pretos, já me esquivei de famílias de ciganos e aprendi a afugentar o medo o suficiente para que ele não me dominasse. Mesmo quando depois a meio da década de 80 outro problema assustador dominou a Amora, o da droga, com muitos toxicodependentes a tomarem de assalto algumas zonas, aprendi a não ter medo das seringas, a não ter medo dos caronchos, farrapos humanos inofensívos que mais tarde ou mais cedo quinavam de overdose. Nestes anos todos de Margem Sul aprendi a não ter medo. Aprendi a não ter medo da poluição, dos pretos nem dos ciganos nem dos assaltos nem dos tiroteios nem da droga. E em 27 anos de vida nunca tive medo, até ontem.

Ontem provei o medo meus amigos. Provei o medo como nunca imaginaria que pudesse provar. À meia noite e meia dentro do metro da linha azul para a Baixa-Chiado eu conheci o medo. Entrei insuspeito para a carruagem do metro com os phones nos ouvidos, pois evito ao máximo ouvir as conversas das pessoas, e encostei-me à porta em pé. Num relance de curiosidade pela carruagem quase vazia quis ver quem ali ia àquela hora. Vejo um sorriso branco, enorme, desmesurado, com uns dentes antinaturalmente brancos, e uma cara lavadinha, quase imberbe, que se fazia acompanhar de um riso sinistro. Tremi um pouco e ao olhar com mais atenção choquei de frente com o horror... Era um beto!!!

Não havia que enganar. Tinha um polo às riscas da Burberry's, umas calças de ganga euns sapatos castanhos de vela!!! Meu Deus, onde me vim meter? O cabelo semi comprido a cair sobre os olhos dava o golpe final. Mas o medo só despertou quando vi que não era só um... Nem dois, eram quatro!!! Todos de igual, todos de polo às riscas, todos com o cabelo sobre os olhos, todos de óculos quadrados apaneleirados. Todos... Excepto um que não tinha óculos nem o cabelo semi-comprido, imagino que fosse um acólito ou um aprendiz. Notei que o polo era só azul mas estava também a rir como os outros, daquela maneira comedida, educada, limpimha. E aí tive medo. Começei-me a sentir hipnotizado e quando já estava prestes a dirigir-me a eles com a frase "Oiça lá Bernardo, adoro o seu polo, onde o comprou?", e notava o meu cabelo a ficar mais curto e a cair-me para os olhos e os meus sapatos a transformarem-se nuns de vela olhei para o fundo da carruagem e vi um preto... Um preto e uma preta...."Estou salvo!!!" pensei. Mas, horror dos horrores, ao pé da preta estava mais um, mais dois, que responderam com um virar de cabeça ao riso educado dos outros quatro. Seis, eram seis de polo às riscas, sapatos vela, cabelo a cair para os olhos eóculos apaneleirados. "Eles clonam-se, clonam-se expontaneamente!!! Vamos todos morrer, ou sofrer alterações genéticas..." Mas a salvação chegou finalmente quando cheguei à Baixa Chiado e virei para o Cais do Sodré e eles foram para a linha Verde, de certeza para a Av. de Roma. Lá consegui acalmar quando cheguei ao barco e lá estava um magote de pretos a roubar umas míudas, um bando de heavy-mecas gadelhudos a curtir a bebedeira e dois agarraditos a coçarem a ressaca junto às portas de saída.
"Em casa finalmente..."

Bem hajam....

2 comentários:

Estou-me nas tintas para a tua opinião...