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sábado, 26 de julho de 2008

A CHAMADA DEPRESSÃO CRÓNICA DOS PORTUGUESES: Um pequeno ensaio sobre a saudade, o fado e o blues



( Hoje é um blog longo, mais académico e conceptual. Se quiserem perder tempo a lê-lo até ao fim, sejam bem vindos, se não estiverem para aturar-me os devaneios filosóficos pretensiosos, compreendo perfeitamente... ;P )

Volta e meia vêm a público, em variados noticiários, uma série de reportagens sobre a suposta onda de depressão que o português está a sofrer e que tudo isso tem a ver com o desemprego, com os processos judiciais intermináveis, com o preço dos combustíveis, com o Benfica não ganhar o campeonato, com a inflação... Depois é o costume, o jornalista vai para a rua a fazer as perguntas imbecis da praxe, do género, "Sente-se deprimido?" "Acha que temos razões para esta depressão?" E a vítima, normalmente a selecção das edições dos telejornais escolhem sempre o prototipo do português entrevistado que é alguém de meia idade, de classe média, de estatura média, com cultura geral média ( que no caso do português é saber ler e assinar o nome ), lá responde, fazendo ao máximo para esconder o tumulto que lhe vai pela cabeça, causado pelo adultério do conjuge e o emprego precário na fábrica à beira da falência, lá encolhe os ombros com um sorriso amarelo e responde que sim, que normalemente todos respondem e dá para tudo. Depois as reportagens são decoradas com o chantili da cartilha dos sociólogos, antropólogos e psicólogos que despejam ccom a lenga lenga a justificações batidas das conjunturas sociais, quotidianas, familiares e outras que tais e ficamos todos muito mais esclarecidos.
Ou então não.
O facto de estarmos de facto numa conjuntura, para não nos afastarmos da cartilha, menos positiva no país isso não implica que estejamos todos mais deprimidos. O condição essencial e arqutípica do português é este estado, não depressivo que o epíteto é talvez demasiado clínico, mas melancólico. Se quiserem de uma melancolia que pode atingir por vezes contornos patólógicos em alguns picos cronológicos mas que não depende de conjunturas e sim da condição natural de ser português. Mesmo se fôssemos o país mais rico do mundo, se tivéssemos a sociedade limpa de corrupção e criminosos não conseguiríamos libertarmo-nos daquele sentimento que nos faz comichão diariamente na alma. Por outro lado não nos reduziríamos à má fé dos povos do norte onde são de facto ricos e têm tudo o que se poderia desejar e acabam por se matar aos magotes porque não aguentam o tédio e o vazio. O português alimenta-se de tédio e de vazio, porque a notificação do tédio e de vazio que nos caracteriza é uma notificação negativa, ou seja, é um vazio que é acompanhado de uma co-apresentação de esperança. O seu melhor exemplo é a noção de saudade, que erróneamente é considerada uma palavra exclusivamente portuguesa pois há étimos equivalentes no castelhano, no galego, no romeno e mesmo no alemão, mas cujo sentimento, a forma como sentimos, como sabemos o que significa o étimo, é exclusivamente português. É que embora os nossos vizinhos mais próximos, os romenos e os germânicos tenham uma palavra que se pode aproximar ou etimologicamente ou na raíz da sua significação à saudade portuguesa, o que está em causa na sua tradução existêncial quotidiana não é de todo equivalente.

Saudade, fado e blues
Reflexo disso, e esse reflexo teria que ser projectado inevitavelmente numa forma de arte, é o nosso género musical nacional, o fado. Não há, no meu parco conhecimento da cultura internacional, se houver façam o favor de me informar, nenhuma forma de arte onde o único motor criativo seja o sentimento de perda. Nem o blues, e e escolho aqui o blues pois será aquele que mais me vem à ideia no que se trata de cantar as desgraças e cuja estrutura lirica e harmónica é, aparentemente, equivalente ao do fado, que apenas trata de situações esporádicas de tristeza, onde o fado é a própria tradução da perspectiva católica ( do grego catholos, universal, que quero afastar-me o mais possível das referências religiosas ) da condição de perda irreparável.
Senão vejamos. O blues usa uma estrutura básica de acordes a acompanhar letras simples que tratam de pequenas estórias de abandonos, de traições ou de pequenos desaires monetários pessoais que essencialmente retratam um ambiente decadente cujo autor foi protagonista, cuja vivência o faz sofrer e do qual se quer libertar, como podemos ver aqui nesta letra de uma das divas do jazz/blues dos anos 30, Billie Holliday:

BILLIE's BLUES
Lord, I love my man, tell the world I do,
I love my man, tell the world I do;
But when he mistreats me, makes me feel so blue.

My man wouldn't give me no breakfast, wouldn't give me no dinner,
Squawked about my supper and he put me outdoors,
Had the nerve to lay a match-box on my clothes,
I didn't have so many, but I had a long, long ways to go!

Some men like me 'cause I'm happy, some 'cause I'm snappy,
Some call me honey, others think I've got money,
Some tell me, "Baby, you're built for speed,"
Now, if you put that all together, makes me everything a good man needs!

Billie Holyday

A causa da desgraça é simples, um desgosto amoroso e a noção do objecto que é para os homens. É decerto razão para uma perspectiva deprimida da vida mas dada a natureza da contingência da situação, embora seja algo com que nós, de vez em quando nos identificamos, não é algom que reconheçamos como condição essencial de todos nós. Nem algo que queiramos viver. O blues é uma espécie de expiação de pequenos fantasmas e pequenos pecados. O blues tem um espirito cool que responde às vicissitudes contingentes da vida com o contingente sorriso de uma malha em Ré em 12 compassos.
Em alternativa comparativa podemos ver a diferença neste fado da nossa própria diva, Amália Rodrigues e cujo conteúdo ultrapassa a simples contingência acima descrita:

QUE DEUS ME PERDOE
Letra: Silva Tavares
Musica: Frederico Valério



Se a minha alma fechada
Se pudesse mostrar,
E o que eu sofro calada
Se pudesse contar,
Toda a gente veria
Quanto sou desgraçada
Quanto finjo alegria
Quanto choro a cantar...

Que Deus me perdoe
Se é crime ou pecado
Mas eu sou assim
E fugindo ao fado,
Fugia de mim.
Cantando dou brado
E nada me dói
Se é pois um pecado
Ter amor ao fado
Que Deus me perdoe.


Quanto canto não penso
No que a vida é de má,
Nem sequer me pertenço,
Nem o mal se me dá.
Chego a querer a verdade
E a sonhar - sonho imenso -
Que tudo é felicidade
E tristeza não há.

Amália Rodrigues

A assunção da própria condição, de cujo o fado é uma fuga consciente, tão consciente que o próprio fado cantado é sobre essa condição, não se reduz a um acontecimento que tanto poderia ter acontecido como não mas que é reflexo de um sentimento que se sente, passe o pleonasmo, necessariamente em todos os que o ouvem. A frase "Fugindo do fado fugia de mim" é a descrição mais perfeita o sentimento português de destino certo, de um destino que não se pode evitar, um destino que é acompanhado pela noção de saudade que mais não é que a consciencia, dada numa co-apresentação com o vazio do quotidiano, que a felicidade ficou lá atrás e que dela temos apenas o caminho, nem que esse caminho só leve à inevitabilidade do fim que a todos nos é destinado. Esse tal sentimento que as instituições vulgam em chamar depressão não é mais do que a condição de ser português.
A depressão de que falam existe só e apenas porque é fabricada por um quotidiano artificialmente afastado dessa consciência. Um quotidiano cuja desgraça é rapidamente desviada para soluções imediatas e fáceis que vão da mais básica telenovela até ao institucional Prozac. Logo, não admira que nos telejornais apareçam agora essas reportagens em modo de alarme que o português anda deprimido. Somos subrepticiamente conduzidos para um suposto alívio que nos é filantropicamente oferecido pelas televisões e pela industria do entretenimento. Somos bombardeados com horas e horas de processo casa pia para depois, logo a seguir, termos mais um episódio das novelas da TVI, em jeito de analgésico para a alma. As imagens de acidentes, doenças e miséria são intercaladas com anúncios a concertos no Emanuel e seu rebento Mikael (Mikael??? foda-se...) no coliseu e com imagens da loiríssima e cor-de-rosíssima Margarida Rebelo Pinto a anúnciar o seu último romence-pop. Todo este processo é perfeitamente natural e justificado com pretensões de serviço público pelos seus promotores com a velha desculpa de sempre. "As pessoas chegam a casa e depois de verem as desgraças só se querem é distraír. Nós damos o que as pessoas querem ver" Finalmente são as próprias reportagens sobre a depressão que dão a ideia uqe a única solução possível a a ida ao farmacêutico de serviço à procura do genérico de anti-depressivos mais barato.
Em última análise a suposta depressão que assola o Portugal de hoje é fruto de uma espécie de círculo vicioso de causa-efeito do qual não nos conseguímos libertar porque passámos de um "Fugindo ao Fado, fugia de mim" para uma fuga que se desenha nos contornos quotidianos do "Desgraça, depressão, cura" seja ela uma novela, um jogo de futebol ou uma dose de fluoxetina.

Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado
mas é isso que nós somos.

Bem hajam

1 comentário:

Estou-me nas tintas para a tua opinião...