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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A overdose de Eusébio e o vício da televisão

Declaração de intenções. Sou do Benfica. O que significa que o que vou escrever pode-se aplicar a qualquer outro epifenómeno de cobertura televisiva de funerais públicos que tanham acontecido ou possam vir a acontecer mas escrevo do que me toca diretamente. Aconteceu o mesmo com a Amália, com o Papa, com o Mandela, com o Senna no Brasil mas como não sou fanboy da Senhora Dona Amália nem Católico e, apesar de ter sido fã de Senna, já faz 20 anos que ele morreu, falo do grande Eusébio porque sou do Benfica e ontem deixou-nos o nosso maior símbolo.

Desde que, no domingo de manhã se soube da notícia da morte de Eusébio, que os três principais canais entraram e modo exclusivo e durante 48 horas, quer os canais em sinal aberto , quer os canais de notícias do cabo, praticamente se dedicaram em exclusividade à cobertura do velório, do cortejo fúnebre e inundaram o tempo de antena com o Toni a repetir em loop as suas experiências com o Eusébio. Apesar de Eusébio ser uma figura mais consensual que as outras e ter unido mais ou menos a nação à volta da sua morte, ainda assim, e isso é permitido com mais facilidade pelas redes sociais, surgiu o habitual coro de vozes contra a overdose de cobertura do evento, com os argumentos habituais: "Era só um jogador de futebol"; "Não era suficientemente importante" ou o simples, "Não há mais nada de importante do país para noticiar?", etc

Isto diz-nos uma de duas coisas ou as duas.

Primeiro:
As pessoas estão de tal forma dependentes de uma rotina de televisão ou de uma dose diária de fait divers variados, passe o pleonasmo, que qualquer coisa que quebre essa rotina as deixa num estado de privação:

"Então, só dá Eusébio? E as mortes pelo mau tempo? E o governo para falar mal? E a fome em África para eu sentir pena dos coitadinhos? E a Cristina Ferreira para me dar tesão?" Esta é a conclusão que posso retirar de quem tem cabo com uma média de 120 canais a debitar inanidades 24 horas por dia e que se queixa de o Eusébio aparecer em 3 deles apenas durante 48 horas.


A segunda é o habitual:
Mesmo que não tenham cabo (e a cobertura total foi dada no cabo, nos canaios abertos foi apenas parcial) as pessoas não conseguem desligar-se da TV. Embora o mundo exista lá fora, ou até arrumado nas prateleiras de casa para quem tem livros e gosta de ler, a TV continua a ser a caixa onde todos se agregam à volta.

Mesmo para quem tem internet (e a internet para mim torna a TV algo secundário) é da TV que as pessoas se queixam. Este fenómeno existe porque ninguém se pode queixar da internet. É absolutamente livre. A internet é o que eu quiser que ela seja mas as pessoas continuam a querer que lhes enfiem conteúdos pelas goelas abaixo e essencialmente querem queixar-se dos conteúdos, embora sejam completamente livres de não os consumir.

Outro fenómeno que surge quando alguém morre é o das vozes que se lembram de trazer todos os podres do personagem à baila.

De repente somos um país de imaculados...
 

Houve depressa quem tenha lembrado que o Eusébio tinha como melhores amigos o whiskey e o putedo.

Era um bêbedo e ia às putas, olha a admiração. E até provavelmente foi isso que o matou. Foram as suas escolhas, teve as suas consequências. Esse era um problema dele e só dele.

Se ontem as elegias fossem por ele ser um putanheiro era a estátua do Zezé Camarinha que estava no Estádio da Luz.

Se quiserem também podemos fazer uma estátua de bronze ao Eusébio putanheiro, já que está tanta gente a falar dessas suas qualidades. Com um copo de whiskey na mão e uma puta a fazer-lhe um bico. Era bonito.  

Podem ter a certeza que não era nem o maior putanheiro nem o maior bêbedo deste país. Para esse lugar haverá um rol de gente na fila à sua frente para que lhe seja erguida uma estátua dessas.

O que ele era, foi e será para sempre, é o maior jogador de futebol deste país. Foi isso que se celebrou ontem.

Tudo o resto é história acessória que escolhe ver quem não lhe quer reconhecer o talento e o génio.

Quanto ao pessoal que se queixa da overdose de Eusébio... as operadoras de TV por subscrição têm 146 canais. Quem não tem cabo ou afins, desligue a televisão, compre um livro, veja pornografia na internet, beba um whiskey, vá às putas.

Eu sei que consegui fazer a maior parte dessas coisas ontem e ainda assim acompanhei o funeral do Eusébio.

Bem hajam