De todos os pequenos fait divers que me foram acontecendo ao longo da vida académica da licenciatura há um que me ficou remoendo na consciência até hoje.
Na boa vida universitária, com muito trabalho de estudo mas também muita farra e copazaina e essencialmente a liberdade de não ter que cumprir um horário rígido, não eram raras as vezes que, depois de noitadas preenchidas a deboche, ainda arrastava o corpo cansado para as aulas.
Num desses episódios, no autocarro 16 da Carris que me trazia da Caixa Geral de Depósitos da Av. da República para a Av. de Berna, vinha com uma ressaca de sono tremenda, de olhos esbugalhados e boca aberta a salivar. Mas dirigia-me para as aulas, portanto de mala e livros armados para mais um dia de pedagogia e ressaca.
Naquela moínha semi-tonada da sonolência e expectativa sofredora de um dia recheado de aulas monocórdicas, não deixei de ouvir uma observação da senhora que se sentava á minha frente, dirigida à minha pessoa ensonada, mas comentando com uma amiga que a ladeava.
"Vês? Coitadinho. Vai para as aulas, ali para a universidade. Vai cheio de sono. De certeza que esteve a trabalhar. Trabalha e estuda. Há que dar valor a estes jovens que se esforçam por ter uma educação e fazem estes sacrifícios"
Com os olhos fechados, por isso a senhora se deu à liberdade de me comentar, nao deixei de esboçar um sorriso cínico mental, onde lhe respondi em pensamento:
"Soubesses tu que estive levantado até às 4:30 da manhã a mamar cerveja e a ver um documentário sobre a história da pornografia na SIC..."
No entanto aquele repente de cinismo foi logo abafado por um aperto de arrependimento. O tom da senhora foi tão de boa fé, com um ar de tamanha maternalidade, compreensão e carinho, decerto habituada a ver o corropio de estudantes no autocarro, decerto mãe ou avó de um estudante e trabalhador, que aquele esgar de cinismo foi substituído por um sentimento de dívida eterna para com a atitude compreensiva que aquela senhora teve para com o meu aspecto de cansaço.
Senti que, na sexta feira passada, passados oito anos desde esse fait divers, a minha divida foi finalmente paga.
Depois de uma semana de trabalho tenso, de aulas até às 21:00, e de uma aula daquelas academicamente pesadas e densas, ao sair meio atordoado da sala, tipo zombie e com o corpo a latejar de cansaço, juro que ouvi a senhora do autocarro a dizer-me lá no fundo da memória:
"Aposto que preferias ter estado o dia inteiro a mamar cerveja e a ver pornografia"
Dívida paga!
..... :D :D :D :D :D....
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