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segunda-feira, 5 de maio de 2008

Para uma fenomenologia da leitura quotidiana

Os hábitos de leitura diários do português: Jornais, revistas e demais pasquins. Para uma fenomenologia dos periódicos no dia a dia do tuga trabalhador.
(Mais uma "daquelas" análises longas, desfrutem, ou então não )

As vicissitudes de uma educação/doutrinação nas artes obscuras da análise arbitrária levam a que um homem, quando deixa de se dedicar exclusivamente a cogitações efémeras para passar a diluir-se no dia-a-dia calendarizado nos minutos apertados do relógio de ponto, ao achar-se livre da pressão dos horários, nos escassos momentos em que não tem outro remédio senão esperar que chegue o transporte para o levar ao seu local de trabalho, repare em pormenores que escaparão ao mais comum dos mortais. Não que estas observações fugazes sejam alguma espécie de poder sobrenatural, inalcançável aos não iniciados na Doutrina, mas serão mais aquilo que me impede de me homogeneizar completamente num quotidiano banal, cinzento, cronometrado.

Um dos rituais mais interessantes de se observar, algo que se repete desde os tempos imemoriais onde algum decreto divino decidiu juntar terminais de transportes com quiosques de revistas, é o enxame de gente que se acumula consecutivamente à frente dos jornais e revistas ali pendurados. Interessante por dois motivos.

Primeiro pelo movimento das massas. Nos terminais de transportes é quase obrigatória a paragem do utente pelo quiosque, para "ver as gordas". Nenhum dia de trabalho começa bem sem um café, um rissol e sem "ver as gordas". Analisam-se, nos dois minutos bem medidos que se para em frente às revistas enquanto o barco ou o comboio não chegam, todos os acontecimentos frescos do dia anterior. Vê-se o CM, o DN, o Público, o JN, a Capital, O Independente ou o Expresso se for mais ao fim da semana. Engolem-ser as últimas da Bola, do Record ou do Jogo. As mulheres olham para as capas da TV7 Dias, da Caras, da Nova Gente etc. No fim, depois do festim de letras e fotografias, o povão do enxame resolve-se apenas por duas soluções. O Correio da Manhã e A Bola. No entanto, depois de ser lido "as gordas" estes dois diários, que acabam por servir apenas de passatempo nos cerca de 45 minutos de média que o trasnporte leva a chegar ao local de trabalho, acabam por se finalizar em leitura de casa de banho ( tópico já aqui analisado ) ao fim do dia, lá em casa. Pasquins estes que começam a ceder o lugar à genial invenção que condensa todos eles em um só pasquim best off e gratuito que é o Destak, Meia Hora, Metro e afins que, para o efeito do assunto deste blog, valem o mesmo que os seus antecessores.

O outro lado interessante é também, agora afastando-nos do enxame do povão, olhar para as revistas e jornais em si. O relance pelos diários não traz nada de novo. Não foge muito à lista que já falei. Nem as chamadas revistas femininas ou masculinas, as de "grande informação", tipo Visão, ou as de pc's ou de "infotainment". Mas se já repararam a maior parte das revistas expostas não são as de maior procura. Há depois aquelas revistas de especialidades que um gajo fica sempre a pensar: "Quem é que compra esta merda?" E ela há de tudo. Revistas de tauromaquia, revistas de tunning, revistas sobre pássaros, revistas sobre engenharia mecânica, sobre agricultura, tractores, bebidas, etc. Depois há ainda os jornais brasileiros, russos, em inglês, mas que ainda assim se compreende. Em grande número são também as revistas "África". A minha questão é esta. Deve haver mesmo muita gente a comprar aquilo tendo em conta que todos os meses se renova o stock e as revistas não deixam de estar à venda. Afinal deve haver aí mais pessoas com interesses bastantes específicos que não se limitam a ler o 24Horas. Mas também é certo que essas não vão nos transportes públicos.

Ainda dentro das "revistas da especialidade" há a apontar a específicidade de alguns títulos e capas bem sugestivos. Como são edições limitadas a qualidade gráfica e editorial não é a melhor, muitas delas assemelhando-se, nos critérios editorias, com os cartazes de preços de algumas tascas portuguesas onde "à caracóles e imprial". Um que me chamou à atenção particularmente foi o título de uma revista dedicada à caça. Essa revista tinha o sugestivo título de "CALIBRE 12!. Numa revista de caça, título mais directo não pode haver. Só mesmo "Caçadeira". Ora o editor escolheu desta vez uma capa mais animada para fugir às habituais fotografias de codornizes e javalis em descampados. Nada melhor do que colocar nessa capa uma menina, bonita por sinal, em pose de caça. Mas desengane-se o mais punheteiro leitor se pensa que a menina estava em vestes menores. Não. Ostentava umas calças e um colete de camuflado, uma boina à Alentejana e uma caçadeira das grandes ao ombro. Não deixando de sorrir sensualmente para a câmara. Ora o que esta revista nos diz é que o caçador não é panasca mas o que curte mesmo é caçadeiras. Assim, escusa de comprar a Playboy e ainda se pode masturbar com o último modelo da Remington de repetição e respectivos cartuchos de calibre doze...

Outro dos grandes mistérios dos hábitos de leitura do português em transporte público é ainda o facto de serem as mulheres as maiores leitoras nos autocarros e nos comboios. A isso se deverá o facto de o Correio da Manhã ou o Record se lerem num instante, e a Maria ou a Tv 7 dias trazerem um pouco mais de material para ler... Desisti de tentar perceber a razão quando hoje, ao olhar por cima do ombro de uma senhora que folheava uma revista de receitas culinárias, logo a seguir ao artigo "Béchamel: O grande aliado", depois de duas ou três receitas de bolos, aparece um artigo que se intitulava "Menopausa, suas razões e terapia" seguido por "Coelho com molho de alho"

Nesse momento tive o vislumbre de que as regras de sentido pelas quais o nosso quotidiano se rege assentam num ténue e frágil andaime de pura arbitrariedade. Heidegger chamar-lhe-ia Ansagen. Um anúncio, um chamamento de algo fora do quotidiano, de algo de primordial... Abanei a cabeça, abri o Record, pus o volume do meu leitor de mp3 no máximo para ouvir o mais alto possível os Mars Volta e deixei-me seguir viagem até a segurança familiar da minha sala...

Bem hajam.

4 comentários:

  1. "Calibre 12" é um óptimo nome para uma revista gay...

    E o Independente já acabou.

    E os Mars Volta andam chatos.

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  2. Brilhante esta análise da leitura quotidiana! :)

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  3. O Independente é uma marca de referência do Jornalismo Nacional... Desde que um dos jornalistas escolheu dar-me meia página no suplemento de música só pela única razão de tentar comer-me a vocalista...

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  4. Bem, acho esse um critério perfeitamente legítimo, sobretudo se a vocalista for boa!

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Estou-me nas tintas para a tua opinião...