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quarta-feira, 11 de julho de 2012

Um carro no fundo de uma ravina com uma série de gente morta dentro.

Quando o nosso carro, velha carcaça acabada, ainda aguentou uns solavancos lá para o ano de 1974, acabou de desfazer-se em 1982. Foi quando uns senhoras da Europa nos deram um carro novo lá para o ano de 1986.

Durante 30 anos o nosso carro aguentou-se. O carro, que era um carro bonito, sólido e agradável de habitar, teve uma série de condutores que, apesar de não saberem conduzir lá muito bem, e muitas vezes conduzirem alcoolizados, nunca nos atiraram por uma ravina abaixo.

Tinham era um grave problema: era pessoal do tuning.

Ora, o pessoal do tuning, para além do seu duvidoso gosto estético, endémico a quem pensa que percebe muito de determinada coisa e, para disfarçar, enche-se de iconografia e demais bugigangas relativas a esse assunto, até que o seu interlocutor se sinta de tal modo ofuscado pelo exagero que não faça muitas perguntas, tem ainda o vício de quitar o carro com coisas que são muito vistosas mas na prática não servem para nada.

E foi vê-los, uns após outros, deslumbrados com o equipamento que os anteriores deixaram, numa sofreguidão de "o meu ornamento de capô é maior que o teu ornamento de capô, a quitarem o carro com cada vez mais escapes de rendimento, alleirons, estofos de cabedal, bancos aquecidos, sistemas de combustível a nitrogénio, GPS de última geração e até, um ou outro, uns dados felpudos para pendurar no espelho retrovisor.

Durante 30 anos o nosso carro foi sendo equipado com tudo e mais alguma coisa, útil e inútil, de tal modo que em 2004 o carro parecia estar no seu auge de equipamento e potência.

Só que os condutores tinham outro problema. Deslumbraram-se com o carro que contruiram mas esqueceram-se que tinham que usar o carro para levar os seus passageiros a algum lado. E neste deslumbramento limitaram-se a conduzir um bólide sobreequipado em círculos.

Com este equipamento só dava vontade de pregar o pé no fundo. E, apesar de a sua condução não levar a lado nenhum,  não primavam pelo cuidado com o material. Condutor após condutor, usavam o carro como se fosse um NASCAR de competição. Ele era primeiras a fundo, em que cada arranque despachava meio depósito de gasolina, ele era derrapagens apertadas, rotações a bater no vermelho, travagens a deixar borracha no alcatrão e choques com os carros do lado para os ultrapassar.

Mas aos poucos a gasolina ia-se gastando, os pneus começavam a ficar carecas, as pastilhas de travão a começarem bater no ferro e a chapa a caír aos bocados. A pouco e pouco ia-se descobrindo que muitas das jantes vistosas e alleirons de competição, pouco contribuíram para o modo geral de como o nosso pobre carro era conduzido, muito menos para um destino que nos fosse útil ou rentável.

Ainda assim, entre tantas peripécias e solavancos, nós, os passageiros, nunca nos sentimos inseguros, nem nenhum dos seus condutores nos tentou atirar de encontro ao muro ou em sentido contrário de frente para os adversários. Era gente que sabia mais ou menos conduzir, mesmo que em círculos.

Só que esqueceram-se que não tinham dinheiro para pagar a conta. E o pessoal das garagens e revendedores de peças, gente que não prima propriamente pela cortesia e urbanidade, adjectivos difíceis de qualificar a partir de fatos de macaco oleados e chaves sextavadas, começaram a exigir o pagamento. Em segredo, os condutores meteram-se com uns agiotas alemães que prometiam juros baixos para pagar aos tipos dos escapes e dos pneus.

Inevitavelmente, e após tantos anos a andar a gastar gasolina, pneus e travões sem nos levar a lado nenhum, os fornecedores começaram a bater à porta, os agiotas começaram a cobrar juros mais altos e tivémos que expular os condutores.

Contratámos uns condutores novatos, cheios de ideias, que a primeira coisa que coemçaram a fazer foi pedir desculpa aos agiotas e a pagar aos fornecedores. Com uma contrapartida. O carro tinha de ser completamente limpo. E vai daí toca de tirar os alleirons, os escapes de rendimento, os vidros fumados, as jantes especiais. Entusiasmados com a sangria, também começaram a tirar a direção assistida, os travões ABS, os vidros eléctricos, o ar condicionado, ao autorádio. Curiosamente deixaram os dados felpudos no espelho retrovisor

Limparam o carro de tal maneira que o deixaram muito parecido com aquele que tínhamos em 1974.

Depois da limpeza, lá se sentaram ao volante. Foi quando descobrimos horrorizados que estes novos tipos não sabem conduzir. Assim que meteram a primeira, saíram da estrada esbaforidos e em pânico, rebentaram com os muros e seguiram directos a um penhasco.

E será assim que nos irão encontrar no fundo de uma ravina.

Um carro desfeito só com quatro rodas, assentos de pano e uma série de gente morta dentro.

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